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domingo, 26 de setembro de 2010

O taxista paraibano e Lula

Semana triste e cinzenta na campanha eleitoral. Os vídeos de cachorro bravo; os golpistas reclamando de golpe; tudo pelo avesso… 

Vontade de tirar a sombra dos olhos; vôo de memória para um dia ensolarado de junho passado. 
Eu indo de João Pessoa até Recife para pegar um avião, entro no taxi preparada para duas horas de tédio, e o que me acontece é a melhor conversa do ano.

O taxista, paraibano bem-humorado além da conta, ia me fazendo aquele tour básico de taxista levando paulista em cidade bonita (e a paulista lendo no banco de trás). Até que chegamos à rodovia que leva ao Recife.


E eu comecei a ficar meio besta com o tanto de obras na pista, de caminhões com tudo quanto é coisa passando de lado a outro, de galpões industriais na beira da estrada com placas inusitadas - "Centro de Treinamento de Operadores de Máquinas Pesadas"; até hélice de moinho passou na direcção do norte. Surpresa, comentei com o taxista:


- Nossa, que diferente que está isso, que movimentado. Na minha memória aqui era um canavial só … ("… um canavial triste de dar dó, com povo sem rumo passando na beira, os olhos baixos de fome," não disse, só pensei, me vindo as imagens soltas da minha última passagem por ali, quando iam os 1980 e tantos).


Pra quê.
Vira o taxista e me diz:


- Isso era ANTES.
- Antes de quê?
- Antes disso tudo. A senhora sabe.
- Antes do Lula, é?


Como se eu tivesse dado a senha de algum código de cumplicidade, vem em seguida, de chofre, a pergunta dele:


- Professora, a senhora que é do sul, me diga, é verdade que tem gente por lá que NÃO VOTA EM DILMA?


Respondo eu que sim, que era verdade. Muita gente, sim. Sim, gente estudada. E ele:


- Mas eles querem o quê? Que volte tudo a ser como era ANTES?


Pergunto, afinal como era esse antes, e ele me conta.


Da infância na família de cortadores de cana nalguma parte daquele canavial faminto. Do pai com as mãos lanhadas do facão e do feijão nenhum na mesa. Do dia em que resolveu ir pra capital do estado para parar a fome. Da miséria e do horror que passou, menino de doze anos (eu pensando nos meus filhos, o coração apertado). Até que um dia as coisas começaram a melhorar de um jeito... A cidade crescia, hotel novo pra todo lado, ele arrumou um trabalho de porteiro. Daí  resolveu aprender a dirigir, e com os seus contatos de porteiro bem-humorado além da conta, virou taxista com clientela fixa entre os hotéis e a universidade. 


- E o seu pai? (pergunto)
- Quase morreu de alegria quando eu voltei com a papelada pra ele tirar a aposentadoria rural. Me dizia, "meu filho, mas isso é de verdade mesmo?" E chorava, coitado. 


Fomos ficando mais amigos e ele me conta que com todas essas alegrias, a maior que ele tem mesmo é o filho. Que está cursando o ensino médio. E vai pra faculdade depois.


- Pra faculdade, professora! (o orgulho embargando a voz) - e não é só o meu menino não, é essa meninada nova toda. Tudo pra faculdade!


Por essas e outras (diz) é que ele não consegue entender porque tem gente que queira voltar para o ANTES.


Nisso eu, paulistana cinzenta, pessimista sombria, digo ao Gertúlio que, veja bem, tem que ter cuidado, essa gente não está pra brincadeira - vão jogar pesado (e era junho ainda, isso…). Ao que ele me responde:

- A senhora está enganada. Isso não tem mais como voltar pra trás. Isso é que nem começar um foguinho no meio do canavial: ninguém nunca mais consegue apagar.


Chegamos no Recife, eu com a alma lavada do fogo no canavial, o Gertúlio me prometendo que vai voltar a estudar ("agora vai dar, professora").


Agora nesses últimos dias de campanha, que começaram com uma cara mais cinzenta e sombria do que eu esperava lá em junho, vou buscar na lembrança dessa conversa um sol de alma.


Vou tentar lembrar das palavras do Gertúlio que nem um mantra: "É fogo no canavial, ninguém consegue apagar"…


texto de Maria Clara 
 
 

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